terça-feira, 30 de junho de 2009

PERDOEM: ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM


Oito ministros do STF deram uma aula pra não ser aprendida

Certa vez um colega de trabalho, jornalista por convicção, falava sobre a desnecessidade de um diploma para exercer o jornalismo. Dizia ele, comparando o jornalismo à medicina, que esta, ao contrário daquela, lida diretamente com a vida e por isso exige formação técnica. Gostaria que ele me respondesse com o que o jornalismo lida, senão com a vida do cidadão, de um ponto de vista subjetivo? De tão poderosa, nossa profissão pode acabar com a vida social de uma pessoa. E não há errata que dê jeito nisso.
Mas já que o forte são as comparações, vamos a elas. O Ministro Gilmar Mendes foi infeliz em comparar o jornalista a um chefe de cozinha. Com todo respeito a esse profissional, o cozinheiro não forma opiniões. Suas idéias não são compradas, levadas para casa e reproduzidas por aí.
O Ministro Cezar Peluso desvirtuou a discussão. Afirmou que “o curso de jornalismo não garante a eliminação das distorções e danos decorrentes do mau exercício da profissão, que são atribuídos a deficiências de caráter, a deficiências de retidão, a deficiências éticas”. Genial! Mas nossa discussão não perpassa esse mérito. As faculdades de Direito, por exemplo, formam profissionais que decidem, entre outras questões, pela privação (ou não) da liberdade de um infrator. Quantos advogados são inescrupulosos e aproveitadores? Caráter, de fato, não se aprende na faculdade. O bom caráter é nato. Nem por isso o diploma dos advogados foi extinto. Nenhum defensor do diploma pra jornalismo acredita que é a faculdade a mentora exclusiva da ética, da moral e da responsabilidade com a vida do próximo.
A nossa luta é em defesa da regulamentação de uma das mais importantes profissões do mundo, que no Brasil, agora, tem sua informalidade coroada pela Corte Suprema do País. Este passo significa um retrocesso numa luta histórica. Contrasenso num mercado de trabalho que está cada vez mais exigente. Hoje em dia, profissionais de inúmeras áreas, além da graduação, buscam infinitas especializações. E até uma segunda, uma terceira graduação. Mas para ser jornalista, tanto faz. Pouco importa. Se você é um analfabeto funcional, você também pode. Afinal, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que exigir diploma é agredir a liberdade de expressão. De quem? Dos donos do poder? Dos controladores da informação?
A graduação não fere a liberdade de expressão. Pelo contrário. Defende este direito tão precioso e tão preciso. Obriga que um profissional seja preparado para lidar com essa liberdade. E conheça a teoria que deve gerar a prática. E aprenda a refletir muito do mais do que a escrever. A partir do momento em que surge uma faculdade para uma determinada profissão, isto é admitir que se deve passar pela academia para chegar ao exercício profissional. Numa nação como a nossa, em que a educação é o antídoto para todos os problemas sociais, presenciamos oito ministros tomarem uma decisão que deve preterir a educação superior no jornalismo. E o pior, baseando-se em defesas superficiais e equivocadas de argumentos inócuos e claramente parciais, que não refletem as necessidades da classe e tampouco a opinião da maior parte dos brasileiros. Isto por que eles são os mais preparados do país para ocuparem seus cargos. Pelo menos em tese.
O ministro Ayres Britto afirmou que “ela (a profissão) se disponibiliza para os vocacionados, para os que tem intimidade com a palavra”. Se o dom fosse condição suficiente para o exercício de uma profissão, as faculdades seriam todas dispensáveis. A técnica é desnecessária? De que ponto de vista? Isso não se converte em riscos para a população? Não abre precedentes para profissionais desqualificados e amadores?
A imposição desta decisão e a descrença que ela pode nos causar não deve omitir o meu manifesto. Exerço aqui o meu direito à sagrada liberdade de expressão e a minha obrigação de posicionar-me diante de incoerências. O dever precípuo do jornalista é lutar por aquilo em que acredita. Mesmo que acredite naquilo sozinho.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

SOBRE OS APAIXONADOS


Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada. É inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão.

Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz: "O meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.Começo minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: "...e livra-me da dor da paixão não satisfeita, e da dor muito maior da paixão satisfeita".

Todo mundo sabe que a paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é um desejo de posse que, para existir, não pode se realizar. Como a fome: depois do almoço a fome acaba...

Paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisamente, ela vive da ausência do objeto amado. Não se trata de ausência física, o objeto amado distante, longe.

A dor da ausência física tem o nome de saudade. Saudade tem cura. A saudade é curada quando o objeto volta. A dor da paixão é diferente. Não tem cura. A saudade do objeto amado, mesmo quando ele está presente, é o perfume característico da paixão. Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu:"Por que tenho saudade de você, no retrato, ainda que o mais recente?E por que um simples retrato, mais que você, me comove, se você mesma está presente?"Que coisa mais esquisita! Como pode ser isso? Como pode se sentir saudade de algo que está presente? A resposta é simples: a gente sente saudade de uma pessoa presente quando ela está se despedindo. Cecília Meireles, desenhando sua avó morta, a quem ela muito amava, disse: "Tu eras uma ausência que se demorava; uma despedida pronta a cumprir-se." Dirão: "É natural. A avó já era velhinha..." É verdade. Mas o que caracteriza o olhar apaixonado é que ele percebe, no rosto da pessoa amada, essa ausência que se anuncia e essa despedida pronta a cumprir-se. O apaixonado pensa que sua paixão tem a ver com o objeto. Ele não sabe que foi o seu olhar que o tornou encantado.

Os poetas são pessoas apaixonadas pela vida. E a sua paixão faz com que ela, a vida, apareça sempre banhada por uma luz crepuscular. Rilke perguntava, sem esperanças de resposta: "Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo que fazemos?" É o olhar da pessoa apaixonada que cria a imagem do objeto da paixão. É sobre Cecília Meireles que o Drummond escreve. Mas sua descrição, eu creio, se aplicaria a todos os objetos da paixão:Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços de sua presença entre nós, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos. Distância, exílio e viagem transpareciam no sorriso benevolente... que confirmava a irrealidade do indivíduo.A dor da paixão não satisfeita é essa: o apaixonado deseja possuir o objeto do seu amor, mas ele escapa sempre. Por isso ele sofre. Movido pela dor, quer possuí-lo. Não sabe que, para que sua paixão continue a existir, é preciso que ele continue escapando sempre.

A paixão só ama objetos livres como os pássaros em vôo."...e da dor muito maior da paixão satisfeita".A dor da paixão não satisfeita é iluminada por uma alegria. O apaixonado vive na presença de que um dia ele possuirá o objeto da sua paixão. Mas a "dor muito maior" da paixão satisfeita não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.

Escrevi uma estória sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pássaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pássaro era livre. O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a paixão ama pássaros em vôo. Mas a Menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola.Gaiola? Há as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis são feitas com desejos.

Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos. Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, O paciente inglês, As pontes de Madison, Amor nos tempos do cólera, A menina e o pássaro encantado. As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas, escolhemos uma. É a nossa gaiola. Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro. Quando imaginamos havê-lo encontrado - que felicidade! Ficará feliz em nossa gaiola. Será o amante da nossa estória de amor: eu para você, você para mim... Nós o colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor.Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar. Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. Não mais o reconhecemos. É um outro. Essa é a razão por que a dor da paixão satisfeita é muito maior.Contada assim, a estória parece ter um vilão e uma vítima. A verdade é que os dois são vilões, os dois são vítimas. O desejo da gente é sempre engaiolar o outro e levá-lo pelos caminhos que são nossos. Isso vale para tudo: marido-mulher, pai-filha, mãe-filho, patrão-empregado, professor-aluno... Não admira que Sartre tenha dito que "o inferno é o outro".

Não haverá uma saída. Lembro-me de um pequeno poema de Pearls que sugere a possibilidade de uma relação sem gaiolas:

Eu sou eu.Você é você.

Eu não estou neste mundo para atenderàs suas expectativas.

E você não está neste mundo para atenderàs minhas expectativas.

Eu faço a minha coisa.

Você faz a sua.

E quando nos encontramos,é muito bom.


Rubem Alves, O amor que acende a lua, 1999.